sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Cemitério das Esperanças Renascidas - Danny Marks


            — Olá, eu queria falar com o encarregado do setor.
            — Pode falar, sou o encarregado por enquanto. Você deve ser o meu substituto, não?
            — Sim, mas como soube?
            — Ah, só de ver a gente já sabe. Você tem cara de quem acredita. Me fez lembrar do meu primeiro dia. Todos temos essa cara quando chegamos.
            — É mesmo? Nunca me disseram isso.
            — Nem vão. Não ajuda em nada, sabe? A não ser aqui.
            — Como assim? Estou confuso.
            — Normal, é seu primeiro dia, logo se acostuma. Aqui todo mundo acredita, por isso que estão aqui. Senão não haveria como fazer o trabalho. De vez em quando aparece algum fingindo que acredita, mas logo se descobre.
            — É mesmo? E o que acontece?
            — Bem, ai vai para onde eu vou, ou pior.
            — Desculpe, mas realmente...
            — Veja, é preciso acreditar para que as Esperanças possam ser plantadas, desenvolvidas e colhidas.
            — Sim, me falaram isso no treinamento. É que...
            — Fale, não tenha medo. Não há problema algum aqui. Pode se libertar e acreditar no que quiser. Isso é o que alimenta as Esperanças.
            — É que você disse que...
            — Ah sim, que eu vou para outro lugar? É verdade, fui transferido para o cemitério das Esperanças.
            — Nossa, sinto muito.
            — Não sinta. Às vezes acontece, e alguém precisa lidar com isso.
            — Eu nem sabia que elas podiam morrer.
            — Claro que morrem, aos montes às vezes. E de vez em quando algumas renascem, mas não podemos contar com isso. Por isso tem que tomar muito cuidado, é um grave problema quando alguém permite que uma esperança morra. Pior se você a matar, não há perdão para isso.
            — Então você...
            — Não, claro que não. Felizmente o meu erro não foi tão ruim. Foi horrível, mas ainda há chances de reabilitação.
            — Fico feliz. Mas também estou curioso...
            — É que... nossa ainda é difícil falar sobre isso, ainda estou trabalhando na recuperação. Eu tinha algumas Esperanças muito boas e...
            — Se não quiser falar, tudo bem.
            — Não, é bom falar com alguém que acredita. Ajuda muito mesmo...
            — Entendo.
            — Pra resumir, eu tinha só que cuidar de algumas Esperanças, mas não sei o que aconteceu. Me distraí, sei lá, não dá pra saber ao certo ainda. O fato é que perdi as Esperanças.
            — Nossa, isso é uma tragédia.
            — Sim, eu sei. Talvez por minha culpa elas tenham morrido.
            — Mas você vai se recuperar, tenho certeza.
            — É, acho que sim. Por isso me mandaram para o outro lugar. Para ver se recupero as Esperanças perdidas.
            — Se puder ajudar em alguma coisa, conte comigo.
            — Tenho certeza que sim. Viu? Nada como falar com alguém que acredita. Creio que vai fazer um ótimo trabalho.
            — Você também. É só uma fase difícil, mas vai se recuperar.
            — Agradeço. Ah, só mais uma ultima coisa.
            — Sim, claro.
            — Não esqueça de alimentar as Esperanças. Elas são muito frágeis, mas sem elas estaríamos todos perdidos.


A Senhora e a Morte (Animação) - Comentários Danny Marks


"A Senhora e a Morte" é um curta-metragem de animação espanhol, produzido por Antônio Banderas e dirigido por Javier Recio García, foi indicado ao Oscar em 2011 na categoria de melhor curta de animação, se tornando a primeira produção animada espanhola a conseguir este feito.

Sinopse: Uma senhora idosa olha nostálgica pela janela do quarto. Vemos uma fotografia de um senhor que ela acaricia com saudade. A doce velhinha vive sozinha em sua fazenda, aguardando a chegada da morte para encontrar seu amado marido novamente. Uma noite, enquanto dormia ela é convidada a atravessar as portas da morte. Quando está prestes a atravessar o portal, a velha senhora acorda dentro da enfermaria de um hospital onde um médico arrogante a trouxe de volta à vida, e ele vai lutar contra a morte para recuperar a vida da velha senhora à qualquer custo.
Apesar da temática esta animação é muito divertida. Passeia entre o desejo de morte de uma pessoa que já não tem mais o que esperar da vida, e todas as animadas tentativas da morte em levá-la já que o médico orgulhoso tem todas as artimanhas para que a velhinha continue entre nós.
A disputa entre o médico e a morte é impagável, com ótimas sacadas e muitas risadas e provoca boas reflexões. 

Um excelente vídeo para demonstrar como uma narrativa pode ser profunda e leve ao mesmo tempo, trabalhando apenas com imagens e sons, sem palavras, mas deixando a mensagem de forma simples e clara para qualquer público. 
O ritmo, a coesão, a coerência, as referências diretas e indiretas que partem do conhecimento enciclopédico mas são perfeitamente inseridas na narrativa, criam um efeito harmônico que foge ao lugar comum, apenas ampliando a abrangência narrativa, aprofundando as questões que são discutidas em subníveis de leitura.
Nada neste vídeo é desperdiçado, desde os arquétipos mais fortes até o mais simples (e hilário) contexto em que a história é narrada. Cria-se um efeito poético que toca profundamente, faz refletir, rir, e gera uma sensação de extase, de plenitude, fazendo da antitese narrativa uma forma de completar a narrativa pelos textos e subentendidos, tornando-a uma obra de arte que vai muito além do espaço que ocupa, completando-se em cada leitor.

Veja também os créditos, pois o curta tem extra.

Uma animação que pode mudar a sua vida (ou a sua morte).

Vídeo: Youtube
Texto: Danny Marks
Referências: Pitada de Cinema Cult ( http://pitadadecinema.blogspot.com.br/2012/12/a-senhora-e-morte-la-dama-y-la-muerte.html ) (2013)

Canto para minha Morte - Raul Seixas



Canto para minha morte - Raul Seixas

Canção para minha Morte - Manuel Bandeira


Bem que filho do Norte
Não sou bravo nem forte.
Mas, como a vida amei
Quero te amar, ó morte,
— Minha morte, pesar
Que não te escolherei.

Do amor tive na vida
Quanto amor pode dar:
Amei, não sendo amado,
E sendo amado, amei.
Morte, em ti quero agora
Esquecer que na vida
Não fiz senão amar.

Sei que é grande maçada
Morrer, mas morrerei
— Quando fores servida —
Sem maiores saudades
Desta madrasta vida,
Que, todavia, Amei.

Manuel Bandeira - Antologia Poética (Nova Fronteira / 2010)

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Diário de um ex fumante - Danny Marks

 
            Domingo – Planejando a Grande Decisão: Amanhã vou parar de fumar, mas antes vou dar um adeus a todos estes cigarros, vou fumar todos eles e vê-los indo para o espaço como fumaça. É amanhã começa a Grande Decisão.

Segunda Feira - 1o Dia da Grande Decisão:
            Hoje decidi parar de fumar, o primeiro dia sem fumar do resto da minha vida. Dizem que não é fácil, mas eu vou conseguir, nem que leve o resto de minha vida. Não é possível que um canudinho com folhas secas seja mais forte do que eu.

            Quarta Feira - 3o Dia da Grande Decisão:
            Ah! Falei que seria moleza. Até agora não senti vontade de um cigarro. Vai ser moleza. Quem disse que parar de fumar era difícil? Que bobagem. Eu paro quando quero...

            Sexta Feira - 5o Dia da Grande Decisão:
            Caramba, onde eu coloquei os chicletes, só de sentar aqui para escrever me veio a imagem de um cigarro na cabeça. Espera um pouco que vou dar uma porrada nesse maldito cachorro que não para de latir.
            Quase uma semana sem fumar. Vai ser moleza. Sabia que eu era mais forte do que a merda de um canudinho de fumo, com aquela fumacinha azulada saindo da ponta, aquele sabor,  os momentos sem pensar nada, um café antes e depois... Deixa eu fumar, digo, chutar  o cachorro de novo...

            Domingo - 7o Dia da Grande Decisão:
            Voltei do hospital, o cachorro fugiu, depois de me morder. Isso é que é fidelidade. Tenho andado meio nervoso por causa das coisas que tão acontecendo, mas não sinto falta do cigarro. Cigarro? O que é isso? Hahahaha, vou ate comprar um para comemorar uma semana sem fumar...

            Segunda Feira - 8o Dia da Grande Decisão:
            Caramba, fumei o maço inteiro ontem, vou ter que começar tudo de novo...Comprei outro cachorro.
           
            Quinta Feira - 12 o Dia da Grande Decisão:
            Estou enjoado de balas e chicletes. Engordei oito quilos antes de descobrir que chocolate não ajuda em nada. Meu reino por um cigarro...Mas que porra de reino? Não consigo dominar nem a mim mesmo? Vou resistir, tenho que sobreviver a isso...Preciso resistir, sou um homem ou um... fumante?

            Sexta Feira - 13 o Dia da Grande Decisão:
            To quase completando um mês, faltam só...Quantos dias mesmo? Tenho que parar de contar. Contar dá ansiedade...Devia ter comprado um cão mais manso...Este quase me devorou a perna, como vou chutar ele agora? Vou dar um monte de cigarros pro desgraçado, ai ele vai ver o que é bom...Melhor não, vai que ele resolve parar de fumar também...

            Sexta Feira - 20 o Dia da Grande Decisão:
            Tenho resistido bravamente a comprar o primeiro maço, já parei de ver televisão. Ainda ontem quase dei um soco em um cara que me ofereceu um cigarro. Eu não sou covarde, eu vou vencer, é só uma questão de colocar a idéia na cabeça. Será que se eu fizer auto-hipnose adianta?
            Eu não sou fumante, eu não gosto de cigarros....

            Quarta Feira - 25 o Dia da Grande Decisão:
            Eu não sou fumante, eu não gosto de cigarros...Eu não sou fumante, eu não gosto de cigarros...Eu não sou fumante, eu não gosto de cigarros...Eu não sou fumante, eu não gosto de cigarros...Eu não sou fumante, eu não gosto de cigarros...Cigarros...gosto...fumante....eu...gosto...cigarros...eu..fumante...cigarros....AHGHT .

            Segunda Feira - 30 o Dia da Grande Decisão:
            Hoje faz...sei lá...melhor nem pensar no assunto... Tenho resistido melhor.
            Devolvi o cachorro para a loja, nem quis o dinheiro de volta, sai mais barato devolver o desgraçado canibal do que a conta do hospital. Tive que jogar um cobertor sobre ele, não conseguia me ver sem rosnar. Será que TPM é assim?...

            Terça Feira - 31 o Dia da Grande Decisão:
            Meu antigo cachorro voltou, aceitei ele de volta pelos velhos tempos. Porra, o cara foi leal, sofreu junto comigo enquanto pode. Tem que levar isso em consideração. Parei de dar sermão nos amigos fumantes, temos que preservar a amizade ao menos enquanto ainda os tenho, vai que eles morrem de tanto fumar? Agora falo só para o cachorro, pelo menos ele não faz cara feia, fica me olhando com aquele ar de pena...

            Quarta Feira - 60 o Dia da Grande Decisão:
            Já posso me livrar daquelas fotos aberrantes de problemas provocados pelo fumo, acho que vou parar de ter pesadelos agora.

            180 o Dia da Grande Decisão:
            Ah, já me sinto melhor. Consegui subir as escadas até o meu apartamento no quinto andar sem ficar sem fôlego, acho que já dá para encarar uma academia... Vida nova...Me sinto outro....

            Domingo - 360 o Dia da Grande Decisão:
            Enfim, acho que agora estou livre do cigarro, agora dá para sentir o cheiro da fumaça, da poluição, do suor nos coletivos, de desinfetante no metrô...
            Cacete é melhor eu me mudar de cidade, procurar um ar mais saudável...

            Segunda Feira - 361 o Dia da Grande Decisão (psicografado):

            Tava tudo indo bem, até que uma bala perdida acabou com a minha alegria, o irônico é que ainda senti o cheiro da pólvora. Sabia que devia ter mudado logo. É isso que dá ficar adiando... Bom, agora sei que não volto a fumar mais...Será?...

terça-feira, 24 de setembro de 2013

O Homem que Cresceu para Sempre - Danny Marks

Quando ele acordou naquele dia o sol já se levantara mais cedo do que devia. Por isso ele nem percebeu que suas calças haviam ficado alguns centímetros menores.
                Na pressa bateu a cabeça ao entrar no carro e jogou a culpa do desconforto claustrofóbico ao trânsito que sempre era maior que no dia anterior.
                Só, talvez, depois de uma semana, quando teve que se abaixar para entrar pela porta da sua casa que ele começou realmente a pensar que havia alguma coisa estranha.
                Os pés já não cabiam mais na cama e passara a olhar as pessoas de cima.
                No começo até achou bacana. Finalmente cumprira os desejos dos pais. Secretamente também fora o seu desejo ser cada vez maior do que aqueles outros garotos que sempre conseguiam as melhores coisas.
                Ser grande já não era um sonho, tornara-se a sua realidade.
                Dois anos depois já não sabia mais o que fazer.
                Era um transtorno ter que ficar abaixado para ver o que todos os outros viam naturalmente. Cada vez mais percebia que quanto mais de cima olhava, menos via o que importava, as pequenas coisas cada vez mais distantes.
 À noite o ar o atingia mais frio que antes e usavam-no como referência mesmo quando não sabiam direito o seu nome.
                Sempre havia os que se aproximavam apenas para tentar alcançar alguma coisa lá de cima, descer estrelas, soprar as nuvens, apagar a lua ou acender o sol. Por mais que houvesse outros a sua volta, só olhavam para cima para pedir.
                Então ele caiu.
                Os que o acompanharam antes do fenômeno acontecer, subiram nas suas costas e voaram no vento que fazia lá em cima, sem olhar para trás. Logo ele que nunca pensara que as pessoas podiam voar, agora desejava apenas poder criar um buraco tão grande em que coubesse dentro.
                Mas qual buraco seria tão fundo?
                Aos poucos, com o próprio esforço, foi se levantando, nem sabia como. Alguns tentavam ajudar, mas o peso era demais para qualquer um carregar por ele.
Com o tempo foi se acostumando a olhar com cuidado o caminho, evitando pisar em alguém. Buscando de alguma forma voltar ao que era antes, mas sabendo que jamais poderia.
                Sua cabeça só conseguia ver o chão, que ficara tão longe quanto as estrelas. Sempre a meio caminho do espaço que o poderia tornar pequeno de novo.
                Um dia, não se sabe por que, simplesmente deu um passo por cima da montanha mais próxima e desapareceu.
                Não levou muito tempo para que se esquecessem dele, e quando lembravam faziam parecer apenas uma lenda qualquer. Uma história mal contada por alguém que fingia saber demais.
Mas o homem continuou a crescer para sempre, em um lugar que antes não imaginava ser possível existir.

domingo, 22 de setembro de 2013

Lição - Danny Marks


Antes do primeiro tapa disse:
— Isto é para o seu bem.
Depois as cicatrizes falavam por si.

O Papagaio de Botas – Danny Marks


             O policial entrou nervoso na sala do delegado.
            — Senhor, tem um caso de furto...
            — Tá, e o que eu tenho a ver com isso? Faz a ocorrência e coloca na fila.
            — Mas é que o denunciante alega que foram depenados.
            — Que se foda, anota a porra da ocorrência e coloca na caixinha.
            — O senhor não está entendendo, é um papagaio.
            O delegado apagou o cigarro na placa de proibido fumar.
            — Que tá acontecendo contigo? Não quer mais fazer as ocorrências? Que merda! Tem alguém querendo denunciar um furto, anota as coisas e depois coloca na fila. Dá pra fazer isso?
            — Mas senhor, é que é muito suspeito.
            — O que é suspeito?
            — É que ele está usando botas.
            O delegado ficou olhando para o policial por um tempo, mas nada mais foi dito. A contra gosto levantou da sua cadeira e deu uma olhada na sala de espera. Estava lá, o papagaio de botas.
            — Realmente é muito suspeito.
            — O senhor está vendo? Foi o que pensei.
            — Muito bem. Mas temos que fazer alguma coisa. Ele deu alguma indicação do endereço do furto?
            — Sim, é onde ele mora.
            — Entendo. E havia mais alguém com o suspeito para comprovar a veracidade da coisa?
            — Não, senhor. Disse que quando chegou já tinha acontecido tudo e que não viu mais ninguém.
            — Ai tem truta. Esse ai está escondendo alguma coisa, posso sentir.
            — Eu senti a mesma coisa, por isso vim falar com o senhor.
            — Precisamos agir com cautela, as coisas andam difíceis e não podemos dar vacilo, entendeu? Faz o seguinte, quem tá de plantão hoje?
            — Tem mais uns dois tomando café na padaria.
            — Passa um radio e manda virem preparados pra tudo. Enquanto isso enrola esse ai. Fica vigiando que a gente não sabe o que pode acontecer.
            — E quando os outros chegarem?
            — Captura o desgraçado e joga na cela. Deixa comigo, vou fazer esse papagaio cantar como nunca na vida dele.
            — Eu sabia que o senhor ia resolver a situação.
            — Só uma coisa.
            — Sim, senhor.

            — Bico fechado, entendeu? 

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Um Dia Ruim - Danny Marks


                O valentão entrou no barzinho com cara de nenhum amigo, seguido de perto pelo seu grupo, que servia de inspiração e segurança para as provocações que gostava de fazer.
                Foi logo sentando-se em um canto privilegiado onde pudesse buscar a sua vítima. Tão logo a encontrou, fez como se não a tivesse visto preparando o teatro que lhe era característico e em ar professoral disse para os seus discípulos.
                — Um homem tem que ter atitude, ser macho. Não pode se curvar diante de nada, porque a vida foi feita para os fortes, e quem não gostar disso, que dê o fora dela.
                Os asseclas assentiram como lhes era devido fazer  e ele continuou inspirado.
                — Essa coisa do cara usar terno, ficar todo perfumado, alinhadinho. Isso é coisa de gay, de gente que não presta. É só ver esses políticos, tudo de terno. Bando de pilantra isso sim. Queria ver se eles tivessem que trabalhar, usar os músculos — e batia no bíceps desenvolvido em academia e na farmácia — mostrar que são homens mesmo. Que nada. Sairiam todos como se fossem umas galinhas assustadas.
                E fez a sua demonstração caricata de uma galinha assustada para divertir os que o adoravam como exemplo mor da masculinidade.
                — Mulher gosta é de cara macho, não desses engomadinhos.  É ou não é?
                E o seu grupinho concordou animado.
                Feito o teatro preparatório, levantou-se como se tivesse descoberto naquele momento o cara de terno, cabisbaixo na mesa logo a frente, o copo cheio de um líquido indefinido.
                Traçando uma linha reta entre predador e presa, foi logo dando o bote na vítima desavisada.  Puxou a cadeira e sentou-se de frente para o homem, esperando que o mesmo reclamasse da atitude. Estufou ainda mais o peito para parecer mais musculoso e intimidador.
                Mas o homem não deu ar de que o havia notado, com o olhar pregado no copo.
                Indignado com a atitude indiferente do outro o valentão pegou o copo sobre a mesa e de um gole o esvaziou batendo o copo vazio no tampo enquanto berrava para que todos ouvissem.
                — E agora? O que você vai dizer sobre isso?
                O outro olhou para o homem que estava na sua frente e começou a falar calmamente.
                — Dia ruim. Sabe, hoje acordei atrasado para uma entrevista importante, o relógio quebrou e não despertou. Saí correndo e acabei batendo o carro. Larguei lá mesmo onde estava, não podia perder tempo. Penei para conseguir um táxi e o motorista se perdeu e nos enfiou em um congestionamento. Paguei o táxi e fui andando, mas vieram uns caras e me assaltaram. Cheguei no trabalho e o patrão me demitiu porque não compareci na reunião com os investidores e perdemos o negócio. Voltei para casa andando porque ninguém tinha um centavo para me emprestar. Chego em casa e encontro a minha mulher com outro cara na minha cama. Pego uma arma para matar os dois, mas a arma estava velha, não funcionou. Saí de casa disposto a acabar com a vida. Entro no primeiro bar e vem um desgraçado e bebe todo o veneno do meu copo. Só pode ser um dia ruim. Quer saber? Pra mim chega!! Amanhã vou reaver o meu emprego, fazer as pazes com a minha mulher e arrumar o carro. Não posso ficar deixando que os outros decidam a vida por mim.
                E o homem de terno levantou-se e saiu do bar deixando os seus problemas para trás. Felizmente não é sempre que se tem um dia ruim.

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